“Quando a gente entra no carro,
não sabe se vai voltar”.
A incerteza da transexual Dáfiny, de 27 anos, traz à superfície um dos dramas de quem precisa se prostituir para sobreviver no Brasil, país que mais mata transexuais e travestis no mundo. É na avenida José Bastos, no bairro Rodolfo Teófilo, que Dáfiny, a transexual Bárbara, 25, e a travesti Pâmela, 26, dividem o medo. As três temem, dia a dia, durante as madrugadas de expediente, o mesmo destino atroz da colega de profissão Hérica Izidoro, espancada e jogada do viaduto da avenida onde trabalhava, em fevereiro último.
A Fortaleza insegura é descortinada por manchetes no mundo todo sobre o caso de Dandara, brutalmente assassinada no bairro Bom Jardim por sete adultos e cinco adolescentes homens, como apontam as investigações. Tais barbáries refletem o perfil transfóbico do Brasil. De acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil, somente em 2016, 127 transexuais ou travestis foram assassinadas no País — uma morte a cada três dias. Se acrescentadas outras identidades de gênero e orientações sexuais, o número chega a 343 – uma morte a cada 25 horas.
Conforme aponta o Disque 100, canal de denúncias da Secretaria Especial de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça e Cidadania, o Ceará é o sexto estado brasileiro e o terceiro do Nordeste com o maior número de delações sobre violência contra LGBTs. O relatório, de 2016, mostra que, a cada 1000 mil habitantes, quatro entram em contato com o sistema para denunciar agressões, sejam físicas, psicológicas ou casos de negligência. Os números podem ser maiores se forem consideradas as subnotificações. Em 2014, o Estado ocupava a 14ª posição.
“Eu tenho muito medo, porque somos poucas aqui. Tem uns (homens) que até roubam a gente. É muito difícil… Como teve o caso da Hérica, da Dandara. A Hérica ficava aqui, a gente se conhecia. Ela ficava do outro lado (da avenida). Poderia ser comigo… Aí, como a gente faz: ficamos, no máximo, de três, duas, pra uma fazer a segurança da outra”, resume Pâmela, que trabalha no mesmo “ponto” há seis anos.
“A gente não vai matar, roubar, isso não. O único jeito é a prostituição. Já fecharam as portas pra mim, de muitas coisas. Segui em frente, sem se abater, abalar. Segui em frente”, continua.
Para Pâmela, que já chegou a trabalhar temporariamente como auxiliar de serviços gerais em uma fábrica de costura, o mercado de trabalho é injusto. “(Nas entrevistas de emprego), perguntavam meu nome, se eu tinha referências. Depois diziam que iam ligar, mas nunca ligavam. Já coloquei currículo em alguns lugares, mas não ligaram”. A prostituição, ela conta, veio como refúgio. “A gente precisa comprar uma roupa, ir ao cinema, a uma praia…”, legitima. “E salão de beleza só se for de gente conhecida, viu?”, acrescenta Dáfiny. A colega Bárbara, desanimada, atesta:
“é o jeito de sobreviver”.
A insegurança, no entanto, compromete não só o serviço, mas reforça a intolerância com essa população. "Eles jogam garrafa com mijo, pedra, ovos; jogam aquelas balas de sal. Eles passam tão rápido, jogam e 'pá!'. Tem gente que joga casco de cerveja, daquelas long neck. É gente nos carros, nos ônibus…", relata Dáfiny.
Bárbara ratifica o comentário da colega, dizendo que já fora atingida por uma garrafa de vidro, e soma: “Não é desejando a desgraça do povo, mas, depois do que aconteceu com elas (Dandara e Hérica), a segurança melhorou um pouquinho. Agora, as travestis e transexuais podem ser atendidas em qualquer Delegacia (de Defesa) da Mulher”. Nas delegacias convencionais, ela adverte, “somos marginais”.
Durante a entrevista, Dáfiny lembrou que perguntar pelo nome de batismo de transexuais e travestis pode ser indelicado. Ela ensina que é uma luta diária para se afirmarem mulheres. E buscam, cotidianamente, serem reconhecidas assim.
O estudante revela que até se perceber transexual foi um longo processo pessoal, que exigiu bastante do seu psicológico, e saber o que realmente significava aquela nova descoberta foi algo bastante gratificante. “Há dois anos me descobri trans por meio de um amigo meu, que é trans também. Ele me colocou em um grupo do Facebook e lá tinha relatos de outras pessoas trans e eu fui me identificando” relata João.
Em Fortaleza, alguns grupos estão diretamente ligados a lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT), prestando todo o tipo de assistência, desde auxílio moradia, psicológico, alimentar e social. Alguns dos mais conhecidos da Capital são: Projeto Tudo Vai Melhorar, Grupo Resistência Asa Branca e Associação das Travestis do Ceará.
A história de João e seu processo de aceitação é diferente da realidade vivida por outros homens trans em todo País.
“Foi um processo que eu fui me adaptando. Nesse período foi quando descobri que era trans, e coloquei na minha cabeça que iria me chamar João. Eu sou trans!”, afirmou-se, sorrindo.
De acordo com uma pesquisa feita pela Faculdade de Psicologia Maurício de Nassau, com pessoas de todas as regiões do País, pelo menos 66% desta parcela da população, em 2016, já tentou o suicídio. Outro dado alarmante da pesquisa é que 71,6% dos homens trans já passaram por algum tipo de violência, contra 28,4% de pessoas trans que nunca passaram. Deste número, 94,7% já sofreram violência verbal, 38% violência institucional, 18,1% violência física e 6,4% já tiveram outros tipos de violência (bem como negar emprego, virtual e psicológica).
SAÚDE
Para João, o assunto tem sido debatido com constância pelos meios de comunicação e pela sociedade civil, porém, ainda é necessário um grande avanço sobre assuntos relacionados a gênero por diversos setores, principalmente na área da saúde. Quando se trata de Fortaleza, o estudante descreve a cidade como “atrasada”.
“Tudo, aqui, é uma luta. Até para conseguir um ambulatório, que em outras cidades do Brasil tem com facilidade e que atendem transexuais e travestis, aqui não tem. Era um suporte que a gente poderia ter”, ressalta.
Outro ponto levantado pelo estudante de Cinema é o tratamento burocrático dado a pessoa trans. A partir do momento em que é decidido fazer a mudança de sexo, que inclui também o tratamento psicológico, psiquiátrico e hormonal, as burocracias começam a aparecer. “Para começar a transição, alguns endocrinologistas pedem um laudo psiquiátrico e um do psicólogo. Faz uns cinco meses que estou com o acompanhamento com o psicólogo. Recentemente, eu fui a um psiquiatra porque só ele poderia passar a receita da testosterona, com o laudo. É um processo bem longo”, ressalta João.
Logo após todo o processo de se perceber transexual, o estudante passou a desejar outra conquista: o nome social.
“Quando eu comecei a me identificar como João foi bastante engraçado e legal, já que sempre gostei quando uma pessoa na rua me confundia com um menino. Eu ficava, meio, ‘nossa que massa’!”.
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Os sobrenomes das prostitutas foram preservados por questões de segurança.
Com traumatismo craniano, Hérica Izidoro ficou internada no Instituto Doutor José Frota até sua morte, dois meses após agressão.
De acordo com o Disque 100, Brasília apresenta o maior número de denúncias de violência contra LGBTs no Brasil (7 por 1000 mil habitantes). Em seguida, encontram-se os estados de Paraíba (5), Goiás (4), Piauí (4), Rio de Janeiro (4) e Ceará (3).
Durante a produção desta matéria, outros três assassinatos de travestis e transexuais foram noticiados pelos meios de comunicação no Ceará.
“Desde a infância eu já me sentia homem.
Eu nunca me enquadrei nos padrões
nem no universo feminino”.
O universo masculino para o transexual João Praxedes, de 21 anos, não é algo novo ou desconhecido. Durante toda sua infância, as brincadeiras em que os meninos da sua idade costumavam praticar sempre lhes chamavam mais atenção.
Durante as aulas de Educação Física, ainda no Ensino Fundamental, é que João começou a perceber algo diferente. O jovem relata que, no momento em que professor dava o comando para entrar em fila, sempre surgia uma dúvida: qual dos dois lados, meninos ou meninas? A escolha, segundo ele, sempre lhe trazia uma espécie de estranhamento, por não saber o que estava acontecendo.
“Eu ficava ali no meio me sentindo um ET. Eu não podia ir pra fila dos meninos, se não seria um estranho, mas também não queria ficar na fila das meninas”, lembra o jovem.
O tempo passou e João mudou, se descobriu. A aceitação veio durante a adolescência, quando a atração por mulheres já era algo natural para ele. Foi então que em uma rede social, por meio de um amigo, ele descobriu o que era “trans” e todos os seus significados.
“Tudo, aqui, é uma luta”
João Praxedes narra o início, o meio e o sem-fim de uma luta não só pelo respeito, mas também pela saúde
Ainda haverá Dandaras?
Transexuais e travestis que trabalham nas ruas de Fortaleza descrevem uma Capital violenta, intolerante e desumana
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Após morte de Dandara dos Santos, o governador do Ceará, Camilo Santana, recebeu representantes do movimento organizado LGBT. O chefe do Executivo autorizou a elaboração do Plano Estadual de Políticas Públicas Para a População LGBT, a constituição do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos LGBT e o estabelecimento de um Centro de Referência para dar assistência jurídica e psicossocial às vítimas de homofobia, lesbofobia e transfobia.
Além disso, o governador aprovou o uso do nome social pelas transexuais e travestis nos serviços prestados na estrutura do Governo e o atendimento dessa população nas 10 Delegacias de Defesa da Mulher.
Assegurado pelo Decreto Oficial de número 8.727 de 2016, o nome social é aquele escolhido por pessoas que se consideram travestis e transexuais de acordo com o gênero que se identificam, independentemente do nome que consta no registro de nascimento. A razão vale no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Santana também se comprometeu de articular, junto à Secretaria da Saúde, a implementação do Ambulatório Transexualizador para assegurar a saúde de transexuais durante processo de transexualização, embora o atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) já esteja previsto em duas portarias (GM/MS nº 1.707, de 18 de agosto de 2008 e da Portaria SAS/MS nº 457, de 19 de agosto de 2008) do Ministério da Saúde.
Transpassando: educação e profissionalização
de transexuais em Fortaleza
"Cadê as pessoas trans nas escolas? Cadê as pessoas nos trabalhos formais?
Todos têm acesso ao básico, as pessoas trans não têm. Se essas pessoas não têm acesso
à educação, à saúde e a um emprego formal, quais sãos os direitos que elas têm?"
O Transpassando surgiu da necessidade de se combater a violência às pessoas transexuais e dar uma educação a essa parcela da população que muitas vezes não conseguiu terminar os estudos, seja por conta da vulnerabilidade social ou porque sofreram com a transfobia no ambiente educacional. O projeto virou uma extensão da Universidade Estadual do Ceará (UECE), onde as aulas ocorrem diariamente e visam, principalmente, mulheres e homens trans.
Colocada em prática em meados de 2015, a ideia partiu de duas professoras do curso de filosofia da Universidade Estadual do Ceará, Ilana Amaral, e da transexual, Syssa Monteiro. Ambas, militantes da causa feminista e dos direitos dos LGBTS em Fortaleza. O projeto que tem como principal atividade o cursinho pré-vestibular, ensina muito mais que matérias para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). As reuniões do grupo se tornaram um refúgio.
Com um caráter de coletividade onde todos têm voz, os alunos sentem-se à vontade para sugerir e opinar. Não há uma hierarquia e todos os professores trabalham como voluntários. No curso, elas têm aulas diárias de matérias do ENEM, línguas estrangeiras, gestão cultural, libras e orientação profissional, onde contam com a ajuda de psicólogos que as preparam para entrevistas e dão dicas de mercado profissional.
Uma das maiores dificuldades do Transpassando atualmente, tem sido a vulnerabilidade social que as pessoas trans estão inseridas. Uma das professoras e idealizadoras do programa, Syssa, conta que muitos alunos e alunas não têm condições mínimas de ir às aulas, alguns não tem nem o dinheiro da passagem de ônibus para chegar às aulas. O projeto sobrevive de doações de materiais escolares, livros, alimentos e de dinheiro, que é revestido para as passagens dos alunos.
A educação para essa parcela da população é essencial para uma inserção na sociedade. A maioria das pessoas trans não conseguem se inserir no mercado formal de trabalho e passam a recorrer a subempregos, os chamados "bicos". As aulas aumentam a esperança de muitos deles em entrar em uma universidade e seguir carreira independentemente da sua identificação de gênero.
Com aptidões as ciências exatas, Luana Medeiros, transexual e aluna do projeto, conta que no colégio sofria preconceito e que por isso não consiga se desenvolver como a maioria, mas apesar das dificuldades enfrentadas no ambiente escolar, conta com orgulho que conseguiu terminar o ensino médio no tempo certo. No Transpassando, ela tem se identificado nas professoras e nos colegas, o que a ajudou a retomar uma vontade antiga: a de também ser professora. No fim do ano ela pretende fazer a prova do ENEM e tentar uma vaga no curso de licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Ceará.
A transexualidade tem sido objeto de pesquisa de estudantes, jornalistas e profissionais da saúde mas, mais do que ser alvo de estudos, eles também querem estudar e pesquisar.
“É como se uma patologia nos tirasse a nossa capacidade de pensar, estudar, e quem tem o aval de falar sobre nós fossem os psicólogos e psiquiatras. Queremos ter a autonomia de também sermos pesquisadores”, conta Syssa que também é estudante de filosofia da UECE e ensina em escolas públicas do estado.
Luana Medeiros conta que já sofreu com várias formas de transfobia, “quando muitas de nós saem nas ruas, sofremos com piadas, pessoas jogam pedras e papel na gente". Ela enxerga Fortaleza como uma cidade transfóbica, onde ainda ela teme usar um banheiro de shopping, por exemplo, mas ela não se priva de andar na rua vestida como a mulher que é já está acostumada a ignorar a maioria das violências diárias que recebe,
“muitas de nós prefere apenas se vestir de forma feminina a noite por medo de sofrer preconceito, mas não tenho mais medo. Eu saio de dia, me visto como quero, tento viver a vida normalmente”, conta.
O Transpassando é considerado um Projeto de Extensão da Uece e suas reuniões são todas no Centro de Humanidades da instituição, mas o projeto funciona através de voluntariado e doações. Recentemente, um dos professores abriu uma cota para arrecadar recursos para auxiliar a permanência do projeto. Na campanha de arrecadação no site Vakinha.com.br até agora arrecadou pouco mais de 600 reais, de uma estimativa de 7 mil.
Aberto ao público, as aulas acontecem às tarde, de segunda a sexta-feira, no prédio do Centro de Humanidades da Uece, localizado na avenida Luciano Carneiro. Para os interessados em participar do projeto, basta comparecer às aulas portando CPF, RG e comprovante de endereço.
Qual é a tua Fortaleza?
HELENA VIEIRA
escritora e pesquisadora transexual
Em março deste ano, enquanto socorria Cibele, uma travesti negra e periférica que estava em surto na rua de minha casa, ouvi:
“Neste País, travesti nêga é pior que bicho!”.
Há, nesse enunciado de Cibele, a única resposta possível à Fortaleza em que vivem transexuais e travestis: a inexistente. Não há cidade para elas. A noção clássica de cidade implica em cidadania, na geografia das relações humanas. A margem e a precariedade são os espaços ocupados por elas. A rua escura, os muquifos no centro da cidade, os hotéis.
A ausência de políticas de saúde, de educação e de empregabilidade impedem o acesso da população trans e travesti à vida na cidade. Não somos vistas, a maioria de nós, ao menos, durante o dia. Os ônibus, sempre lotados, são espaços de violência, onde todos os estigmas sociais da travestilidade se mostram. Dizem alguns que travestis são como vampiros, vistas apenas à noite e que causam medo aos "homens de bem".
Recentemente, Dandara, uma travesti, foi brutalmente espancada. Entretanto, maior do que a tragédia daquela morte é a tragédia das condições que a conduziram até aquele espaço.
Fortaleza conta com apenas um equipamento de proteção da comunidade LGBT, o "Centro de Referência LGBT Janaína Dutra", que apenas neste ano completou seu quadro de funcionários para o atendimento à população LGBT. Contudo, este espaço funciona apenas das 8h às 17h, quando a maioria dos casos de violência ocorrem pela madrugada, quando o grosso da população trans e travesti da cidade se prostitui durante a noite e dorme durante o dia.
Quem irá a este espaço? O acesso aos hospitais é igualmente precário, apesar da portaria do SUS, que determina inclusive o uso do nome social, os funcionários ou não conhecem a legislação ou não estão devidamente treinados. Para além disso, há o total desconhecimento das especificidades do corpo T, dos hormônios ao silicone industrial. Pouco se sabe como proceder.